O direito ao esquecimento no Brasil: quais os riscos para os direitos humanos?

Este ano, a Access Now decidiu marcar o dia internacional do direito a saber com um posicionamento sobre o chamado “direito ao esquecimento”. A publicação Compreendendo o “direito ao esquecimento” globalmente é uma tentativa de promover parâmetros claros de proteção do acesso à informação e liberdade de expressão frente a um avanço nas tentativas de estabelecer versões equivocadas ou mal interpretadas deste controverso direito ao redor do mundo.

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Lançado às vésperas de decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro sobre o tema, o documento rejeita a incorporação de um direito ser excluído dos resultados de busca nas legislações nacionais, mas traz recomendações para sua implementação caso seja necessária para garantir aos cidadãos o controle de suas informações pessoais.

A decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia estabelecendo critérios para um “direito ao esquecimento” que implica na exclusão de endereços web dos resultados de busca na Internet iniciou uma grande polêmica internacional sobre os limites da proteção da liberdade de expressão e privacidade. Na América Latina, a ideia caiu como uma luva para figuras públicas interessadas em remover da história registros de abusos, denúncias ou críticas e a incorporação do direito de desindexar conteúdos ganhou popularidade entre parlamentares de diversos países, entre eles o Brasil.

Liberdade de expressão no coração do debate brasileiro

Atualmente, ao menos três projetos de lei tramitam no Congresso brasileiro buscando incorporar à legislação nacional interpretações próprias de um “direito ao esquecimento”. Diferente da União Europeia, o país não conta com uma lei geral de proteção de dados pessoais — alguns projetos de lei sobre o tema encontram-se atualmente em discussão, mas sem previsão de avanços.

Para além de trazerem interpretações equivocadas ou limitadas sobre tal direito, o contexto em que se inserem essas propostas é preocupante. O Brasil apresenta um histórico de abusos aos direitos de liberdade de expressão e acesso à informação e foi criticado internacionalmente pelo uso extensivo de ações de difamação por parte de autoridades públicas para silenciar opositores políticos e discursos críticos. Além disso, o país já foi denunciado por organizações de direitos humanos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela criminalização dos chamados crimes contra a honra.

Na Justiça, apenas em 2016, mais de 20 decisões mencionam um direito ao esquecimento apenas no estado de São Paulo. Os tribunais de outros oito estados também já tiveram que se posicionar sobre o tema, reconhecendo o direito de apagar notícias de fatos passados em cerca de um terço dos casos. A questão deve ser discutida em breve pelo Supremo Tribunal Federal, em disputa envolvendo familiares de uma jovem assassinada nos anos 50, que questionam a veiculação de sua história em um programa de televisão em 2004. A decisão deve orientar a interpretação dos tribunais inferiores sobre o tema.

Compreendendo o “direito ao esquecimento”

Apesar da confusão sobre o tema, o “direito ao esquecimento” que emerge da lei de proteção de dados pessoais europeia inclui dois aspectos diferentes: o direito de eliminação ou apagamento (right to erasure) e o direito a ser excluído dos resultados de busca (right to de-list).

O direito de eliminação permite aos indivíduos deletar todos os seus dados pessoais quando deixam um serviço ou aplicação. Ele é essencial para garantir o controle dos usuários e usuárias sobre suas informações pessoais e deve ser previsto em uma legislação compreensiva sobre proteção de dados. Já direito a ser excluído dos resultados de busca, reconhecido no caso Google Espanha, permite que se solicite aos mecanismos de busca a remoção de endereços web de resultados de buscas realizadas com seus nomes.

O “direito ao esquecimento” não implica na remoção de conteúdos online de páginas de notícias, mídias sociais ou outras e não deve jamais ser interpretado ou aplicado dessa forma. A Access Now não apoia o estabelecimento de um direito a ser excluído dos resultados de busca porque entende que ele representa uma importante ameaça aos direitos humanos.

Limites e garantias

Caso tribunais e legisladores insistam em desenvolver um direito a ser excluído dos resultados de busca em seus países, ele deve ser limitado ao único propósito de proteger dados pessoais, ou seja, sob nenhuma circunstância pode ser estabelecido no contexto de legislações de difamação ou proteção da honra. Além disso:

  • Os critérios para a desindexação devem ser claramente definidos em uma legislação de proteção de dados pessoais compreensiva para evitar a interferência com os direitos humanos;
  • Autoridades judiciais competentes devem interpretar os padrões e critérios para determinar o que pode ser desindexado;
  • O direito a ser excluído dos resultados de busca não deve estar disponível para figuras públicas como celebridades ou políticos;
  • Informações relevantes para o interesse público não devem ser desindexadas, independentemente da identidade do indivíduo que faz o pedido;
  • Independentemente da aceitação ou rejeição de um pedido de desindexação por parte de um mecanismo de busca, usuários e usuárias devem ter fácil acesso à reparação e a um processo para questionar a decisão numa autoridade local de proteção de dados pessoais ou tribunal.

No caso da América Latina, vale ressaltar que existem regras no nível interamericano que estabelecem padrões de proteção altos para a proteção da liberdade de expressão que devem ser observados em qualquer proposta de incorporação do direito a ser excluído dos resultados de busca.

Com esse documento a Access Now espera contribuir com o debate sobre o tema na região. Entendemos que o chamado “direito ao esquecimento” tem implicações tanto na liberdade de expressão, quanto na privacidade e proteção de dados pessoais e é importante que esses direitos possam conviver e se reforçar mutuamente.
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